1.
Distraí-me; não vi que o dia 23 chegava. O ipê até alertou, Primavera! Primavera!, mas não dei ouvidos, só olhos. Os olhos se embasbacam ante a beleza das flores e não dão de primeira com o sentido dos avisos.
2.
Quente. Está tão quente.
3.
As cigarras se deliciam. Você tem ouvido seus gritos alucinados? (Se não, é porque eles já lhe penetraram o subconsciente e se naturalizaram como todos os ruídos contínuos. Como os absurdos que se repetem. Como a História.)
4.
Os gritos das cigarras excitaram os namorados que se amaram de janelas abertas.
5.
O problema das janelas abertas são os pernilongos. Eles também gritam, gritam como os ipês e as cigarras, gritam como todas as coisas que gritam e que, de tanto que gritam, não se ouvem. O ar que entra pela janela nos faz ignorar os pernilongos grudados em nossas pernas a nos sugarem o sangue. Até vemos as picadas, tantas a nos cobrirem a pele... Suspiramos fundo. Fazer o quê. (E então não vemos mais as picadas.)
6.
Quente. Está tão quente.
7.
Esquentam-se os nervos. Você me berra com sangue nos olhos (o pouco que lhe deixaram os pernilongos) que o seu candidato que o seu candidato que o seu candidato que o seu candidato que.
8.
Sua boca mexe lentamente, trêmula tal miragem desértica. Some a voz. Outros sons aumentam devagarinho, devagarinho... Então se escancaram:
9.
Os gemidos dos namorados sufocam seus gritos de ódio. Os gritos das cigarras relembram-nos o lema dos hippies. Os ipês oferecem as flores com as quais se vence o canhão.
10.
A natureza é sábia, ele não.
10.
A natureza é sábia, ele não.